A sombra desliza silenciosa pela parede mofada do quarto, cortinas cerradas escondem o sol e o grosso vidro da janela não permite a entrada dos sons da primavera. Tudo aqui é desolação, o cheiro não o bom, a luz artificial é fraca. Na mobília o abandono é explicito.
Neste mesmo lugar já houve tanta cor e alegria. Ninguém que passa pela rua consegue visualizar a casa tamanho o descaso com a vegetação que cresce de maneira exuberante, não há mais jardim nem canteiro e a varanda se misturou de tal forma que fica difícil definir onde começa. Com muito custo achei a porta de entrada e com os olhos ainda desacostumados ao escuro vou tateando a poeira e me guiando neste ambiente tão familiar.
Lembro nitidamente do dia que fui e de como tudo era diferente, lembro de ter sentido o gosto de liberdade, agora olhando tudo que ficou não consigo me lembrar do que queria me libertar.
Em pé e sozinha aqui novamente sinto um estranhamento, uma falta de reconhecimento, uma ausência de direção, a sensação de perder o foco, de me confundir, a necessidade de diluir as lembranças, de refazer os planos, de desculpar os enganos e seguir, simplesmente seguir.
Não posso refazer o passado, mas vou resignificá-lo. Se essa morada não tiver conserto vou derrubar parede por parede e depois construir algo novo que possa abrigar todas as possibilidades que ainda me restam.